quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

O vendedor de mapas

Por Cleidi Pereira

Aquele senhor de estatura mediana e porte atlético, que saracoteia com seus mapas pelas ruas de um dos bairros mais nobres da capital gaúcha, o Moinhos de Vento, conhece de perto o significado da expressão “matar um leão por dia”. A vida não é nada fácil para Ricardo da Silva Wyse, mas o amor que possui por seu filho Francis, 12 anos, e o sonho de morar junto com o primogênito, que hoje convive com a mãe, transformam as dificuldades em inspirações para vencer a batalha que enfrenta todos os dias.

Para economizar o que gastaria com passagens de ônibus e conseguir faturar os cerca de 600 reais mensais, Ricardo percorre o equivalente a meia maratona diariamente: 24 km. De sua casa, leva aproximadamente três horas para chegar até seu local de trabalho. O seu ‘escritório’ é uma esquina onde vende mapas do Rio Grande do Sul e de outros estados, do Brasil, do mundo e, até mesmo, do corpo humano. “Caminho cerca de seis horas por dia, 1 km a cada 15 minutos, 4 km por hora, ou seja, 24 km por dia”, calcula. Por isso, acredita que é muito difícil ver um vendedor de rua doente, tanto que Ricardo não lembra quando foi a última vez que ficou de cama. Para agüentar a rotina digna de uma atleta, a alimentação é reforçada com banana, aliás, muita banana. “É uma fruta barata e que contém muitos nutrientes”, justifica.

Profissão de risco

O vendedor de mapas é mais um entre tantos brasileiros que, sem estudo, viu as portas do mercado de trabalho fecharem-se a um palmo de sua face morena. Por isso, encontrou na informalidade seu sustento e sua sobrevivência. Nascido em Rio Grande, há seis anos ganha a vida vendendo o “mundo”. Quem lhe ensinou o ofício de comercializar mapas foi o irmão mais velho, Ronaldo, que exerce a função há mais de 20 anos. Ricardo tinha apenas dois anos quando mudou-se com os pais para Porto Alegre em busca de um futuro melhor. Assim como os quatro irmãos, começou trabalhar muito cedo, aos 15 anos, para ajudar na renda da casa.

Numa época de alta carga tributária e intensa fiscalização, a profissão de vendedor de rua é um risco a ser enfrentado por quem não possui outra opção. Sujeito a assaltos e a outros tipos de violências característicos de uma metrópole, Ricardo também tem que estar sempre atento à movimentação das ruas, pois, como atua de forma ilegal, a qualquer momento agentes da Secretaria Municipal da Indústria e Comércio (SMIC) podem estacionar seus veículos, recolher as mercadorias compradas com muito esforço e, ainda, levar os vendedores à delegacia de polícia.
A constante fiscalização e a prisão de alguns colegas fizeram com que seu ‘escritório’, que antes ficava no bairro Moinhos, mudasse para a Rua Osvaldo Aranha. Mesmo assim, depois do expediente, não abre mão de passar no Shopping Moinhos. “Aqui é diferente, é um lugar agradável. Pode até ser preconceito, mas não gosto de ‘chinelagem’. Gosto de conviver com pessoas do meu nível cultural, apesar de eu ser um vendedor de rua”, revela.

Na visão dele, as pessoas costumam comprar mapas para se atualizar, para viajar, para presentear alguém ou, simplesmente, para decorar as paredes de suas casas e consultórios. Das compras grandes, ele lembra com detalhes. Em média, vende oito mapas por dia, porém, para conseguir esse feito tem que contar com a sorte e com a astúcia de vendedor. É aí que entra a obrigação de conhecer cada detalhe, como rios ou cidades, estampado em seu produto. Ricardo diz conhecer muito bem seus mapas, mas vontade mesmo ele tem de conhecer de perto as cidades e países que tanto o fascinam.

Com a fala tranqüila e simplicidade de sempre, o vendedor de mapas conta que foram poucas as vezes que viajou e que o terminal mais distante onde desembarcou ficava em São Paulo. Ele ainda quer voltar para a terra natal acompanhado de seu filho e conhecer de perto o berço de seus ancestrais, vindos da França, Espanha e Portugal. “Imagino que, por serem países de primeiro mundo, esses lugares devem ter muito mais progresso que aqui, as pessoas devem ser mais educadas e ter maior nível cultural”, diz. A Torre Eiffel, onde o avô esteve, é um dos lugares que também gostaria de visitar. “Meu avô faleceu quando eu tinha 17 anos, mas ele dizia que esta era a obra mais fantástica que ele já tinha visto.”

Estranho no ninho

“Eu me considero um estranho no ninho. Eu não deveria estar aqui na rua vendendo mapa. Eu devia ser um professor, porque sou um cara que ama a cultura e que hoje dá muito mais valor para ela do que quando era jovem.” Ricardo acredita que o grande erro cometido em sua vida foi ter parado de freqüentar a escola e, por isso, incentiva o filho a ler bons livros e a valorizar os estudos. O conselho? “Não cometa o mesmo erro que cometi.” Pai-coruja e dedicado, Ricardo tenta ser para seu filho o que o pai não foi para ele: amigo e presente. Visitar o primogênito diariamente é algo sagrado. “Quando, por algum imprevisto, não consigo ir, eu ligo”, conta.

Ricardo é membro da Igreja Jesus Cristo dos Santos dos Últimos dias, conhecida como Igreja Mórmon. Nasceu católico, foi batizado, mas converteu-se após uma visita de missionários desta igreja. Entre as regras as regras de sua religião, estão: não fumar, não beber, não tomar chá preto e nem café, já que a cafeína é considerada uma substância nociva. O casamento, que é realizado no templo, é para toda a eternidade, por isso a ‘unidade familiar’ é muito valorizada. “Temos a lei da castidade, por isso o sexo é feito somente no casamento e com o cônjuge”, conta. O quesito ‘aparência’ também ganha atenção especial. “É difícil ver um mórmon barbudo, cabeludo e com roupas extravagantes. Eu, por exemplo, faço a barba todo o dia. Também cuidamos muito do nosso linguajar e evitamos falar palavrões”, disse.

O grande desejo de sua vida é voltar a estudar e, quem sabe, tornar-se professor. Mas reza todos os dias pedindo a Deus que realize dois grandes sonhos: morar e educar o filho Francis e casar no templo com uma moça nova e bem bonita. Enquanto não tem seus pedidos atendidos segue com a difícil rotina, mas lembrando e praticando todos os dias a regra que sua religião ensina: “Aquilo que quereis que os homens vos façam, fazei-vos a eles.”

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